
Vem comigo, Zé Ninguém. Vou te mostrar alguns quadros preocupantes da tua vida. É a respeito do que pensas no teu dia-a-dia, como estimas os teus inimigos e desprezas os amigos, o modo como fazes amor com a tua companheira, que responsabilidades assumes quando trabalha, ama, odeia, difama. A tua cegueira em defender as ditaduras, em louvar o fascismo – esse mar de desumanidade a privar a segurança e a liberdade dos vivos e a proteção dos nossos filhos. Fica posto que Zé Ninguém somos os muitos de nós que preferem o Estado à Justiça, a grandeza nacional em vez da grandeza pessoal, a mentira sobre a verdade, a guerra sobre a vida. Vê se tu te enquadras neste tipo especial de Zé Ninguém: Onde quer que seja que tu consigas o poder político como representante do povo, em qualquer democracia por aí, assumes justamente o que sofrias, isto é, o comportamento sádico e sanguinário dos governantes e metes a mão no dinheiro alheio. Promovido a amo, tuas possibilidades de grandeza, simplicidade, coragem, definham. Lá, na Casa do Povo, não crias as leis que protegem a vida humana. Ou neste outro tipo: Por mais enraizado teu hábito de elogiar os fortes e poderosos, lembra que a exploração do teu trabalho por eles é mais grave do que há 300 anos. O desdém deles pela tua vida hoje é mais brutal, pois eles fazem agora desaparecer todo e qualquer reconhecimento dos teus direitos! E tu os admiras! Serias tu o Zé Ninguém que não reclama os teus direitos sobre a tua vida? Não te sentes merecedor do direito à felicidade neste mundo? Não assumes as responsabilidades que te cabe para não te entregares aos teus tiranos? Aspiras quando muito a procriar, a se tornar num grande homem medíocre, tão somente um homem rico não pelo trabalho? Não fazes a mínima idéia do que seja a verdade, ou a História, ou a luta pela liberdade? Nós, Zé Ninguéns, louvamos os conquistadores sanguinários, chamamos de terroristas os heróis que combatem as ditaduras. Tu chamas de terroristas os torturados que dão a vida por tua liberdade, por justiça a teu favor! Enforcamos os nazistas depois de terem assassinado milhões, mas onde estávamos antes? Temos preferido ser escravos de quem quer que seja. Nenhuma tirania poderia prevalecer contra nós se tivéssemos ao menos uma sombra de respeito por nós próprios na nossa vida quotidiana. Tu vives empolgado com o sangue derramado pelos hunos e atilas de todas as nações, que nada mais são do que milhões de Zés Ninguéns como tu. Devias pensar em servir à vida, não à morte. Devias deixar que marechais e diplomatas se matem uns aos outros, pessoalmente. Faça sexo com tua mulher porque a ama e não porque tens um certificado de casamento e também a aprovação de um estranho paramentado num altar religioso para satisfazeres as mínimas necessidades sexuais. Não és tu, que veneras o Cristo menino, que nasceu de uma mãe que não possuía certificado de casamento? Não és tu que persegues a mãe solteira como uma criatura imoral? Não és tu que estabeleces distinção severa entre as crianças legítimas e as ilegítimas? O que te levam, marido e mulher, a se agredirem, a torturar os filhos? Tu desprezas, desrespeitas, exploras quem é bondoso, e bates em quem está se rastejando. Saiba que a opressão das leis que regulam a tua vida matrimonial decorre do teu espírito pornográfico e da tua irresponsabilidade sexual. Os teus pensamentos dispersam-se em ruminações apenas sexuais. Demasiado claras são as motivações dos teus apelos á moral e à ordem. Ou não é verdade que beliscas o rabo a todas as empregadas, Zé ninguém moralista? De quantas empregadas tu já beliscaste a bunda? E tu espias o que acontece na cama dos outros! Eu te exorto ao cumprimento das leis apenas quando elas fazem sentido e a romper corajosamente com elas quando escondem armadilhas leoninas. Não creias que para ser religioso seja necessário destruir tua vida afetiva e encolher o corpo e o espírito. O homem precisa apenas ser um ser humano. Mas tu és o povo, a opinião pública, a consciência social. Pensa na responsabilidade gigantesca que esses atributos te conferem. Deves indagar se pensas corretamente, quer do ponto de vista da trajetória social, onde estás inserido, quer da parte da natureza dos atos humanos. Tu acreditas cegamente em tudo o que os jornais escrevem! Não distingues o abismo de estupidez, mau gosto, mentiras e manipulação dirigidas aos teus ouvidos pelos meios de comunicação! Engoles bovinamente tudo o que te segredam aos ouvidos, ambos surdos à verdade e ao amor! És mesquinho como aluno! Não sabes para que serve uma biblioteca! Fazes piadas das misérias humanas! Criticas com o comentário impensado, irresponsável e a graça maldosa! Desejas criticar mas não queres ser criticado! Queres atacar a coberto de qualquer ataque! Jogas na sombra! O que fazes, Zé Ninguém, do manancial de sabedoria que a vida te coloca à disposição? Em família, na rua, no trabalho, na própria democracia, torna-te um ditador! Tu estimas quem te confisca a liberdade! As condições do teu bem-estar na vida e no amor confundes com tecnologia, grandeza do Estado, levantamento das massas, desfilar da artilharia, a libertinagem no amor, a violação de todas as mulheres de que podes deitar a mão. Cura-te dessa prisão de ventre mental! Assuma o poder do amor! O poder do legítimo prazer! Já ouviste as queixas de mulheres com o instinto desarticulado por maridos que não sabem o que é o amor? Já ouviste falar no bom orgasmo? Por que razão vivemos, a maioria, numa permanente frustração sexual? Constróis mal a tua casa, Zé Ninguém, constróis sobre areia, e também a tua vida, a tua cultura, a tua civilização, a tua ciência e técnica, o teu amor, a tua educação de crianças. Pensas na paternidade responsável? Na maternidade responsável? Por falar nisso, maltratas um bebê aos teus cuidados, patrioteiro de merda? E tu, Maria Ninguém, tão purulenta é a tua alma ao ponto de agredir bebês e deixar neles para toda a vida seqüelas autistas de bebês maltratados? Zé Ninguém, tu és o resultado de milhares de anos de repressão da verdadeira vida. Viverás melhor quando a vida significar para ti mais do que a segurança. O amor mais do que o dinheiro. A tua liberdade mais do que a submissão aos opressores. Não mais haverá miséria material e moral quando pensares como os grandes homens e não como os grandes guerreiros, quando fizeres os professores dos teus filhos serem mais bem pagos do que os políticos, quando a tua face humana puder expressar a alegria, a liberdade, a comunicação. Tu te escondes detrás da lenda do Zé ninguém, porque tens medo de mergulhar e de ter de nadar no grande rio da vida. Assim falou o psicólogo alemão Wilhelm Reich (Escuta, Zé Ninguém! – Publicações Dom Quixote, Lisboa, direitos da Livraria Martins Fontes).
(*) Apollo Natali, o autor, é jornalista e articulista do Vivendo Bauru. Com imagem do Youtube.
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