O Projeto de um Entreposto Comercial/Ferroviário no Interior Paulista, 1905 – 1908. Com base em trabalho científico, passo a comentar como se deu o processo de urbanização da cidade de Piratininga, município próximo de Bauru, localidade de interesse de estudo pelo fato de ela ter sido, em 1905, projetada para ser o entreposto comercial da linha tronco oeste da Companhia Paulista de Estradas de Ferro. A importância como entreposto comercial pretendida por esta empresa ferroviária seria equivalente a de como Bauru é hoje. A autoria de seu traçado urbano é atribuída a Adolpho Augusto Pinto, engenheiro-chefe da Companhia Paulista. Contudo, no ano de 1908, a mesma companhia ferroviária recebe a concessão que a autoriza a construir um ramal entre as cidades de Pederneiras e Bauru. Com esse novo ramal, o trecho de Piratininga perde significativa importância, pois todo o fluxo comercial e as instalações dos armazéns da estrada de ferro são transferidos para Bauru. Tal manobra fez com que o almejado entreposto comercial idealizado por Adolpho Pinto não se concretizasse, levando a cidade à decadência. Economicamente dependente do município de Bauru, hoje Piratininga é uma cidade-dormitório. Dessa forma, pretende-se estudar os motivos que levaram a Companhia Paulista, entre 1905 e 1908, a construir Piratininga e desvendar as causas pelas quais fracassou como entreposto comercial do tronco oeste dessa importante e significativa companhia ferroviária. Razões para a formação de Piratininga O período compreendido entre1880 a 1915 é caracterizado por GUNN (1977) como o momento de expansão cafeeira em direção ao oeste novo do estado paulista, território até então identificado como uma área de sertão inexplorado. A partir dessa constatação é possível compreender o movimento de expansão que a Companhia Paulista de Estradas de Ferro pretendia. Em seu relatório de 1903 aos acionistas da empresa, ela enumera as diversas razões que a levaram a cruzar o rio Tietê com a finalidade de atingir essa região tão pouco explorada, efetuando, para tal, uma ponte ferroviária metálica de 400 m de comprimento, um avanço surpreendente para a época. Dentre as várias razões que explicita, vale ressaltar a abertura que esse empreendimento representaria para o desbravamento e ocupação do oeste novo, de modo que Piratininga seria a fornecedora de subsídios e gêneros para a colonização da região e para, posteriormente, servir de entreposto comercial. Além disso, outro ponto de destaque é o fato de o governo ter concedido à União Sorocabana e Ituana – outra companhia ferroviária – o direito de passar a sua ferrovia no município de São Paulo dos Agudos, cidade por onde também passaria a ferrovia da Companhia Paulista até Piratininga. O relatório comenta que tal entroncamento, ao invés de gerar inconveniências, pelo contrário, geraria muitos pontos vantajosos, como a comunicação direta entre o sul e o oeste do estado, permitindo relações de comércio inter-regional. Apesar do estado ser bem servido por uma rede ferroviária, toda ela se encaminha para a capital. Ao estimular-se a ligação inter-regional, iria resultar em uma maior independência da região de Bauru com as relações da capital e do porto. O relatório ainda dá uma descrição de como é o sítio em que iria se implantar esse entreposto e qual era o destino que se almejava à Piratininga: “Para este fim trata de adquirir uma área de cerca de trinta alqueires de terras, e local que perfeitamente se presta ao objeto em vista, já pelas boas condições higiênicas e topográficas, já pela abundância de água e beleza natural da situação. Traçados os arruamentos e dividido em lotes todo o terreno destinado à edificação, serão estes oportunamente distribuídos de graça, estabelecendo-se alguns prêmios em dinheiro para serem sorteados pelos melhores prédios que se edificarem dentro de determinado prazo. A nova povoação se chamará Piratininga, em homenagem a um nome histórico, que a tradição consigna ter sido o do belo sítio em que hoje assenta a capital do estado. E como daqui saíram outrora os valentes pioneiros que descobriram e exploraram quase todo o interior do Brasil, que seja o exemplo fecundo e possa amanhã a nova Piratininga formar outra grande cidade, capaz de espalhar a vida, a civilização e a riqueza por toda aquela terra desconhecida e inculta onde hoje só vagueiam bandos de míseros selvagens”. (Relatório da Companhia Paulista: 1903, p.20). Panorama sócio-econômico da época do café Entre os séculos XIX e XX se observa o surgimento de inúmeras cidades vinculadas à expansão ferroviária e cafeeira, estruturando todo o território paulista a ocidente. Tal fenômeno pode ser vinculado ao processo que CANO (1977) denominou de “complexo cafeeiro”. Para compreendê-lo, é interessante traçar uma retrospectiva até o fim da época colonial para analisar suas causas e efeitos na formação da sociedade capitalista brasileira baseada no café. Segundo GUNN (1977), para haver expansão de café pelo território na época colonial, era imprescindível a liberação de créditos e financiamentos para a aquisição de mão-de-obra escrava para o sucesso da lavoura cafeeira. Desse modo, economia cafeeira e tráfico negreiro estavam diretamente relacionados. Contudo, com o fim do tráfico, a economia cafeeira baseada no trabalho escravo retrocedeu. Por outro lado, outro grupo de capitalistas resolveu investir em novas fazendas cafeeiras tocadas por trabalhadores livres. Estas novas fazendas abandonaram as terras exauridas e partiram para uma nova região, nas cercanias da vila de Campinas, no centro da província. O capital liberado pelo tráfico de escravos disponibilizou capitais não apenas para o investimento em novas plantações, mas em outros setores como o de infra-estrutura urbana e o de transporte ferroviário. Com a promulgação da Lei de Terras, em 1850, esse panorama muda, já que agora as terras passaram a ser comercializadas, evidenciando-se um novo ramo econômico que completava a brecha deixada pela abolição do tráfico na questão do crédito oferecido aos cafezais: a valorização e especulação de terras. Com isso, ocorre um novo processo acumulativo de capital e mais investimentos no cultivo e expansão do café, dessa vez no sentido do Oeste paulista. Junto a esses investimentos vieram melhoramentos na produção, tais como introdução de maquinário e melhores técnicas de cultivo, mas sobretudo a introdução e expansão da rede ferroviária de transporte. Essa passagem marca a transformação da antiga sociedade escravocrata em uma sociedade pré-capitalista. Para resolver o problema da escassez da mão-de-obra, o governo brasileiro recorre à subvenção da mão-de-obra imigrante, cobrindo em até 50% a viagem do imigrante que se tornaria colono nas lavouras de café. É importante notar que a cultura de café era tão expressiva economicamente que recursos nacionais públicos foram direcionados a uma única região do país - no caso, São Paulo – em detrimento das demais regiões, dada à sua importância. A vinda dos imigrantes, porém, trabalhadores livres como são, não iria gerar concorrência aos cafeicultores já que seu acesso à terra é dificultado, prolongando sua permanência junto as grandes fazendas. A partir desse momento, com a chegada dos imigrantes, consolidam-se as relações de trabalho e a acumulação segundo os moldes capitalistas. É também nesse momento que ocorre a cristalização do que CANO (1977) chama de “complexo cafeeiro”, conceito que estabelece uma relação entre terra, trabalho e imigração. De acordo com COSTA (2003), os componentes do complexo cafeeiro são: atividade produtora do café; agricultura produtora de alimentos e matérias primas; atividade industrial; implantação e desenvolvimento do sistema ferroviário paulistano; expansão do sistema bancário; atividade de comércio e importação; desenvolvimento de atividades geradoras de infra-estrutura e atividades inerentes à própria urbanização. Aplicando-se o conceito do complexo cafeeiro, verifica-se o seguinte processo: a expansão da malha ferroviária acompanha as plantações de café,o que garante as companhias ferroviárias a existência de produtos para transporte. Junto à essa expansão, também inclui-se “a expansão de armazéns, escritórios e oficinas das estradas de ferro, do comércio de importação e exportação, do comércio atacadista e de outras atividades tipicamente urbanas, construção civil, comércio varejista, comunicações e outros serviços urbanos em grande parte controlados pelo capital estrangeiro” (GUNN, 1992, p. 63). Estrada para o Mato Grosso O engenheiro Adolpho Pinto em seu livro Historia da Viação Pública em São Paulo (1903) explica que as estradas de ferro em São Paulo foram construídas em 4 fases distintas. Na primeira, como acima descrito, os trilhos das companhias atingem as regiões produtoras. Não é por menos que estas linhas, pelo seus traçados tortuosos e sem as preocupações futuras com o percurso que são chamada de Ferrovias cata-café. Mudanças no modus operandi das companhias ferroviárias em São Paulo ocorrem na década final do século XIX. Se antes elas seguiam os cafezais, agora elas desbravam o terreno para as novas plantações. Adolpho Pinto as chamou de ferrovias de cunho estratégico. Um exemplo de ferrovia de cunho estratégico é a Alta Paulista, já que com a penetração da ferrovia por terras inexploradas e férteis, abriam-se frentes para a expansão da cafeicultura, que, ao seguir a malha ferroviária, já havia o escoamento do café garantido até o porto de Santos e também possuía um meio de transporte eficiente para trazer a mão-de-obra imigrante para a lavoura de café. Assim, torna-se mais perceptível a lógica por trás das expansões ferroviárias acompanhadas da expansão do café. Não é de se surpreender, portanto, que a Companhia Paulista, simultaneamente ao projeto do ramal de Agudos (ferrovia que chegava até Piratininga), já imaginava essa região ligada ao estado de Mato Grosso (hoje Mato Grosso do Sul). Adolpho Augusto Pinto – idealizador tanto do ramal de Agudos e do tronco oeste da Companhia Paulista, a Alta Paulista – teve a sensibilidade de constatar a urgência de se ligar o estado de Mato Grosso à malha ferroviária paulista, já que se tratava de um problema nacional. Problema já verificado desde a Guerra do Paraguai, onde houve muita dificuldade para o abastecimento das tropas até o local de combate. Desse modo, a integração, segundo o engenheiro, visa primeiramente a uma questão de segurança nacional e secundariamente a uma questão econômica. Porém, é muito duvidosa que a questão econômica não seja tão relevante quanto a segurança, já que no relatório de 1903 da companhia, ao falar desse projeto, Augusto Pinto leva muito em consideração o transporte do gado proveniente do estado vizinho, argumentando que, se o transporte for feito por trem, o gado chega à capital mais rápido, mais descansado e mais gordo. Para a Diretoria da Companhia ter um parecer de uma instituição científica de confiança sobre essa conexão, encaminha o problema ao Clube de Engenharia do Rio de Janeiro, importante instituto técnico que estudava problemas de interesse público. Ela também manda uma carta a este mesmo Clube pedindo que precisassem os seguintes termos: quantas vias seriam necessárias para suprir essa ligação com o Mato Grosso; quanto custaria tal empreendimento; quantas fases seriam necessárias para a implantação dessa obra; de quem é a competência da construção dessa obra – se é de exclusiva responsabilidade do governo federal ou se os estados envolvidos e as empresas de viação podem concorrer para a sua realização. Ao listar tais termos, a Companhia declara que não deseja intervir nesse assunto por interesse próprio, mas que quer ver o problema nacional resolvido de uma vez, conforme a citação: “A Companhia Paulista, solicitando o parecer do Clube de Engenharia sobre a questão, muito de propósito deixará de intervir no debate da matéria, pronunciando-se de qualquer forma a respeito, para que se não veja no fato o intuito subalterno de advogar interesse próprio, quando o seu principal empenho é ver o grande problema nacional encarado e resolvido com a isenção, a competência e o patriotismo que a relevância da causa está a exigir” (Relatório da Companhia Paulista, 1903, p.25). O Clube de Engenharia reconhece o problema nacional e sugere que uma linha férrea saísse das imediações de São Paulo dos Agudos e fosse até o Rio Paraguai, ligando os dois estados. Foi concedida à Companhia de Estradas de Ferro Noroeste a construção de tal tronco, saindo de Bauru e chegando a Porto Esperança. Tal ferrovia resultou em novas possibilidades de exploração de terras para o café na margem esquerda do Tietê, sendo um vetor de ocupação e colonização. Já quando a Companhia Paulista recebeu a concessão de construir de Pederneiras a Bauru, esta praticamente ignora o ramal existente de Agudos. Na própria autobiografia de Adolpho Pinto, após aprovada essa concessão, verifica-se que Piratininga e as demais cidades do Ramal de Agudos não são nem levadas em conta, enquanto Bauru é valorizada por ter um entroncamento de linhas (Sorocabana e Companhia Paulista). Tal fato é evidenciado nas imagem abaixo:

A construção de Piratininga Apesar do não florescimento de Piratininga, ela foi idealizada e construída com objetivos em potencialidades. Seu nome, que significa peixe seco, foi escolhido pra homenagear o primeiro centro civilizatório paulista, em 1554, e foi projetada pelo mesmo autor do ramal de Agudos e do tronco oeste da Paulista, Adolfo Augusto Pinto. A Companhia Paulista recebeu do Coronel Vergílio Rodrigues Alves, grande proprietário da zona, uma gleba suficiente para que a empresa construísse seu entreposto comercial. Após a doação da gleba, a Companhia logo procedeu ao arruamento e loteamento de terras, distribuindo-as gratuitamente aos interessados em construir edifícios no local, com a única condição de que erguessem as construções no prazo estipulado.

Traçado regular de Piratininga Vista aérea de Piratininga (FONTE: TOKUMITSU, 1970) (FONTE: IBGE, 1957).

Vista aérea no mesmo período
Assim nasceu o povoado de Piratininga, cuja estação foi inaugurada no dia 25/01/1905, data também comemorativa do aniversário da capital paulista. Sua avenida principal, outra homenagem à história paulista, denominava-se Avenida Anchieta. Mais tarde, esta avenida, onde estava localizada a estação da Paulista, passou a se chamar Avenida Adolpho Pinto. Além de Piratininga, Adolfo Pinto já possuía em mente toda uma seqüência de cidades que iriam despontar ao longo da ferrovia. Para ordená-las, sugere criar cidades com nomes que seguissem a seqüência alfabética, para assim facilitar o viajante de trem que, sem conhecer a região, poderia, pelo nome das cidades, estimar a que distância se encontra aproximadamente de seu destino. Além disso, os nomes das cidades rememoraram eventos históricos e geográficos do território paulista. O abecedário da Alta Paulista ficou com a seguinte seqüência: América, Brasília, Cabrália, Duartina, Esmeraldas, Fernandina, Gália, Hespéria, Italina, Jafa, Kobe, Lácio, Marília, Nipônica, Ormuz, Pompéia, Tupã e Universo. Considerações finais O núcleo urbano de Piratininga, planejado pela Companhia Paulista de Estradas de Ferro, foi idealizado para funcionar como entreposto comercial da nova linha oeste desta companhia. O objetivo deste núcleo não era o de desempenhar o papel de uma model company town,ou seja, uma cidade especialmente construída para abrigar os empregados da empresa, assim como foi Paranapiacaba (MINAMI, 1999). Nosso objetivo é analisar o surgimento do núcleo de Piratininga, o seu conseqüente desenvolvimento e seu papel de entreposto comercial e ferroviário na franja da frente pioneira paulista da primeira década do século XX, e também recolher as respostas para conhecer porque tais ambições não foram concretizadas. Afinal, quais teriam sido os reais motivos que a levaram a ser desconsiderada pela Companhia de Estradas de Ferro? Referências Bibliográficas FERREIRA, Jurandyr Pires. Enciclopédia dos Municípios Brasileiros. Rio de Janeiro: IBGE, vol. 29, 1957 GUNN, Philip Oliver Mary. Importância histórica da fronteira cafeeira na ocupação territorial em São Paulo In: Boletim Técnico São Paulo. São Paulo, n. 8, p. 59-72, 1992. MILLIET, Sergio. Roteiro do café e outros ensaios. São Paulo/Brasília: Hucitec/INL, 1982. MINAMI, Issao. Vila Martin Smith, no alto da serra, em São Paulo, um exemplo típico de Model Company Town. 1994. Tese (Doutorado) – Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da Universidade de São Paulo, São Paulo, 1994. PINTO, Adolpho Augusto. História da Viação Pública de São Paulo. São Paulo: Tipografia e Papelaria de Vanorden & Cia., 1903. ______. Minha vida. Memórias de um engenheiro paulista. São Paulo: Cec, 1970. SCHERER, Rebeca. Notas sobre a urbanização de São Paulo: loteamentos rurais e a Companhia Geral de Imigração e Colonização do Brasil In: Sinopses. São Paulo: FAUUSP, nº15, junho de 1991. TOKUMITSU, Julia Y. Harada. A evolução urbana da cidade de Piratininga: geografia retrospectiva. 1970. Monografia (Conclusão de curso) - Departamento de Geografia da Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras do Sagrado Coração, Bauru, 1970. Diretoria da Companhia Paulista de Vias Férreas e Fluviais. Ramal de Agudos e Estrada de Ferro para Mato Grosso In: Relatório n° 55. São Paulo: Tipografia e Papelaria de Vanorden & Cia., 1904. Estações Ferroviárias do Brasil. Disponível em http://www.estacoesferroviarias.com.br/ Acessado em abril de 2010. Fonte: http://unuhospedagem.com.br/